"Pai Abraão"*: o nômade do deserto retorna a Canindé.

Pe Moacir
Ainda estava escuro quando, pelas quatro e meia da madrugada do dia 20 de setembro de 1982, uma leva de camponeses entrava em Canindé. Não, não eram retirantes flagelados pela seca que castigava o sertão nos primeiros anos da década de 1980. Vinham a pé, em romaria, descendo a serra de Aratuba, para agradecer a São Francisco pela conquista da terra nas fazendas Monte Castelo, Boqueirão e Jardim, desapropriadas depois de muita luta e sofrimento no sertão. Caminhavam com o povo os padres Zé Maria (in memoriam), Alfredinho (in memoriam) e Moacir. 
Foto: Arquivo Padre Moacir
Pelo caminho, enquanto os padres iam fazendo reflexões em lugares estratégicos, mais gente ia se juntando à caravana. Outros ofereciam o pouco que tinham para partilhar: “foi lindo porque na viagem a gente começou a encontrar gente com uma garrafa de café, um pacote de bolacha... quer dizer, uma multidão e o cara trazia uma coisinha. Mas de tanto ser espontâneo, não faltou” - lembrou o padre Moacir. 
Foto: Arquivo Padre Moacir
Uma família – pai, mãe e quatro filhos – esperava a romaria passar. O pai perguntava: “o que vamos oferecer aos padres quando passarem? Só tem água.” Levaram então o pote d’água e um caneco para a beira da estrada na madrugada fria, e todo o precioso líquido foi consumido pelos peregrinos sedentos. Cenas profundamente evangélicas marcam o percurso de pouco mais de 20 quilômetros descendo as ladeiras íngremes na estrada que, serpenteando as encostas, faz o sertão subir a serra ou a serra descer ao sertão. A generosidade dos pobres sinaliza a presença do Reino de Deus e sua justiça em cada gesto de partilha e acolhimento.
Foto: Arquivo Padre Moacir
Ao entrar na cidade a emoção tomou conta dos peregrinos. A lembrança da opressão sofrida, da luta pela libertação e da conquista da terra, agora, tudo isso, era celebrado na cidade-santuário, coração pulsante da religiosidade do povo sertanejo. “Tinha gente que chorava de alegria. Uma agricultora disse assim: ‘eu acho que no céu é desse jeito”’, contou o padre Moacir numa entrevista para uma dissertação de mestrado da Universidade Federal do Ceará. A teologia contida nesta expressão não vem da academia nem dos manuais e catecismos. Ela vem do próprio chão da experiência da realidade sofrida dos pobres. Aí é o lugar da ação de Deus.
Foto: Arquivo Padre Moacir
Mas a Romaria não foi só alegria e experiência de um céu na terra. As forças contrárias rapidamente investiram contra a caminhada. Os padres Moacir e Zé Maria sofreram oposição ferrenha dentro e fora dos círculos eclesiásticos. As autoridades viam com desconfiança a experiência da luta pela terra e depreciavam a figura dos padres. Pelo rádio a campanha contrária dizia que Aratuba era “Aracuba”, que aquela experiência "não era coisa de padre”. 

A polícia tomava as faixas dos romeiros e o clima ficava acirrado. Logo alguém chegava dizendo ao padre Moacir: “o padre Zé Maria tá lá, brigando com um soldado...”. Com a força vocal que só ele tinha, Zé Maria tomava de volta as faixas e bradava: “cadê a ordem de prisão? Vão trabalhar! Vão rezar!” Na hora da missa presidida por Dom Aloísio, a cidade ficou sem luz. Mesmo assim a celebração foi realizada.
Foto: Arquivo padre Moacir
A oposição era tanta que Moacir e Zé Maria foram proibidos de participar da Festa de São Francisco. Dom Aloísio Lorscheider, que vinha celebrar na Festa com mais cinco bispos, mandou dizer: “onde os padres não entram, eu também não entro”. E não foi celebrar. “E era franciscano, né...” – comentou padre Moacir que foi declarado persona non grata em Canindé.
Foto: Arquivo padre Moacir
Trinta anos mais tarde, enquanto celebrava uma missa na Serra da Mariana, padre Moacir foi surpreendido por um ex-vereador de Canindé que pediu a palavra, ajoelhou-se e lhe pediu perdão. Perdão por toda a campanha contra os padres de Aratuba. “Eu estava na escuridão”, afirmava. Depois de um abraço e uma foto, declarou: “Coloquei o senhor, nos anais da Câmara Municipal, como persona non grata em Canindé. Mas vou me redimir”. Três anos depois faleceu o tal senhor. Em 2024, um sobrinho do finado mandou entregar ao padre Moacir um documento. Era o título de cidadão canindeense conferido pela Câmara Municipal àquele que outrora fora considerado não bem-vindo. O falecido havia cumprido a promessa.
Foto: Pe. Evando 2025
Quis o destino que, em 2025, prestes a completar 90 anos, o padre Moacir Cordeiro Leite chegasse de novo, como eterno peregrino, a Canindé. É o “Pai Abraão”, que “de acampamento em acampamento” (Gn 12,9) vai peregrinando pelo deserto em busca da terra prometida, sem nunca tomar posse dela. Armou sua tenda na cidade-santuário, símbolo das romarias, símbolo da nossa eterna peregrinação sobre esta terra. Na casa simples que adquiriu com recursos próprios provenientes de herança familiar, fixou morada e já se prepara para a celebração dos 60 anos de ordenação sacerdotal em 2026 e os 90 anos de vida em 2027.
 
Pe. Evando Alves de Andrade - junho de 2025

*"Pai Abraão" é um apelido dado ao padre Moacir pelo finado padre Bosco. Quando ingressei no seminário no ano 2000, era assim que ele era conhecido por lá.




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